Resenha de José Castello

(publicado em 24/02/2011 na coluna Prosa & Verso no Segundo Caderno do Jornal O GLOBO) 

CRUZ E SOUSA DE CARA FEIA

Vídeo do Poema de Abertura do livro Marcelino na versão portuguesa lançada esse ano no Festival de Óbidos em Portugal do livro Marcelino na versão portuguesa lançada em 2018 no Festival de Óbidos em Portugal 
Animação criada pela PRofª Vera Dias

      A julgar pelo modo como ele mesmo se definiu, João da Cruz e Sousa, o poeta mais importante do simbolismo brasileiro, foi um homem emparedado. Viveu em estado de luta e se acostumou a conviver com o fracasso e a dor. Poeta, negro e filho de escravos, sua curta e dolorosa vida (1861-1898) mereceu, recentemente, um delicado retrato, assinado por Godofredo de Oliveira Neto (Cruz e Sousa, o poeta alforriado, editora Garamond). 

    Já na apresentação do livro, Godofredo expõe sem disfarces os laços vitais que o ligam ao poeta. Ao apresentar Cruz e Sousa, não se esquiva em dizer: "Autor com quem convivi espiritualmente desde a mais tenra infância". Seu livro reflete essa cumplicidade fértil, mas também dolorosa. Depois de acompanhar meu amigo em sua viagem, já ao fim do livro, deparo com uma pequena coleção de fotografias. A primeira delas, apresentada como "célebre foto do poeta em atitude desafiadora", é a que mais me interessa.

    Nela, o poeta aparece de braços cruzados sobre o peito _ como que para se defender de um soco. Encara sem medo, mas com grandes reservas, seu observador, os olhos arregalados de confiança, mas também de desconfiança, e os lábios levemente trincados, marca de um sentimento que mistura o orgulho e a raiva. Tem, porém, os ombros um pouco encolhidos _ como se temesse, a qualquer momento, um golpe pelas costas. Veste um paletó escuro e simula um ar senhorial _ enquanto, por dentro, seu coração dispara.

   A impressionante fotografia sugere ainda uma dose forte de tédio, e até de desesperança. Não foi fácil a vida do poeta _ e Godofredo o acompanha, passo a passo e corajosamente, em seu sofrimento. O mundo, de fato, não o poupou. Mas será só do mundo que poeta se defende? Ou defende-se, também, de si mesmo? Em "Emparedado", prosa reflexiva integrada a Evocações _ livro que aprontou em 1897, mas que só foi publicado postumamente _ , o próprio Cruz e Sousa me empresta uma resposta. Diz: "Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim". 

   Miséria, doença, preconceito, de fato, o açoitaram. O sangue negro, por si, lhe parecia um obstáculo. No mesmo "Emparedado", ele se repreende: "Artista! pode lá isso ser se tu és d' África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto!" Mas a cara feia de Cruz e Sousa não fala só de um mundo que o atormenta e exclui. Ler seus poemas é penetrar um poucos nas bases interiores sobre as quais, vacilante, o homem se mantém (a duras penas) de pé. É acariciar seu esqueleto.

   A poesia de Cruz e Souza fala da brutalidade do mundo, mas fala também de uma brutalidade _ ou, pelo menos, de uma severidade _ que agita seu interior. Em "Ausência misteriosa", poema de Faróis (livro de 1900), ele registra seu olhar perplexo: "E em toda casa, nos objetos, erra/ Um sentimento que não é da Terra/ E que eu mudo e sozinho vou sonhando..." A cara feia não desafia só os que o desprezam; desafia algo que "não é da Terra", algo que ele esconde e que, mais profundo que a tuberculose ou a bronquite, lhe atravessam os ossos, instalando-se em algum lugar perdido e sem nome. Fala, enfim, da angústia de que se alimentaram os poetas simbolistas. 

   A epígrafe do célebre Broquéis, 1893, tomada de Charles Baudelaire, resume isso: "Senhor meu Deus! Conceda -me a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que eu não sou o último dos homens, que eu não sou inferior aos que eu desprezo". Arrisco-me a pensar: Cruz e Sousa permitiu que um fotógrafo registrasse sua cara feia, mas provavelmente não a suportaria no espelho. A dor que o desafia fora, quando despejada para dentro, beira o insuportável. Nem mesmo uma fotografia a captura.

     Poetas vivem _ poetas nascem _ dessas divisões. Alguma coisa não se encadeia muito bem. Conexões falham, laços se rompem: eis o tédio. Os sentimentos não se encaixam e muitas vezes chegam a se anular: o vazio. À violência do mundo corresponde um despencar interior: eis a dor pior. Dessas fissuras _ e não de uma aprendizagem culta e reta, não das belas letras, ou do esnobismo _ os poetas nascem. Disso nasceu e se fez Cruz e Sousa. A este fio invisível Godofredo, para escrerver seu livro, sabiamente, se agarrou.

    Diz Godofredo muito bem que, apesar de tudo, Cruz e Sousa "não era um deprimido". Vivesse hoje _ e talvez lhe prescrevessem fortes doses de fluoxetina! Tanto não era um deprimido, ou não chegou a ser, que se tornou poeta. A questão não é a dor, mas o que fazemos da dor. Cruz e Sousa fez poesia. A cara feia é só uma ponta das zonas profundas de onde ele a arrancou.

GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO nasceu na cidade de Blumenau, em 1951, e reside no Rio de Janeiro. Graduado e mestre em Letras pela Universidade da Sorbonne (Paris III) e doutor em Letras pela UFRJ - onde leciona na graduação e na pós-graduação -, é também um consagrado romancista, tendo publicado O bruxo do Contestado, Pedaço de santo, Menino Oculto e Marcelino, entre outras obras.

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