
REPORTAGEM DE MARCOS PASCHE
Reportagem publicada no Caderno Prosa & Verso do Jornal "O GLOBO" - 27/11/2010
Cruz e Sousa é um poeta cujas obras e vida já foram ricamente estudadas no Brasil e no exterior, fato comprovado , dentre tantos estudos, pelo clássico "Poesia e vida de Cruz e Sousa", de Raimundo de Magalhães Júnior; pelo recente "Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil", de Uelington Farias Alves, e pelo ensaio internacional "Quatro estudos sobre Cruz e Sousa", do francês Roger Bastide. Essa fortuna crítica pode fazer supor que o poeta já esteja "esgotado" como assunto para os estudos literários, mas tal hipótese é desautourzada pela leitura de "Cruz e Sousa, o porta alforriado", do porfessor e romancista Godofredo de Oliveira Neto.
Obra revoga tese de que o poeta foi contrário à sua etnia
O estudo de Godofredo não é edificado pelo prisma de total contestação das referências da vida do poeta, apesar de discordar -- em lance isolado no livro -- de Eliane Vasconcelos num quesito : "A pesquisadora (...) afirma que o poeta nasceu em 1862, e explicita que seu nascimento fora em novembro de 1861. Não há certidão de nascimento". Explicitamente, a biografia age como uma tese para revogar as ideias de acordo com as quais |Cruz e Sousa teria sido um poeta contrário à sua própria etnia ( o livro usa equivocadamente o termo 'raça"), sobretudo pela presença da alvura em muito dos seus textos, implicitamente ela também é um manifesto contra a situação de penúria que sempre feriu a dignidade do escritor brasileiro.
O mau biografismo vê na literatura uma extensão total do "eu" do autor e, de acordo com tal raciocínio, todos os itens "brancos", "alvos" e "cristalinos" da escrita do poeta catarinense revelam seu desejo de pertencer à casta dos arianos. É verdade que o próprio autor de "Missal" deu declarações que podem sinalizar tal vontade, mas o biógrafo está aí para esclarecer o dito e o não dito: "A admiração daquela cultura [ariana], porém, era tradição naquela época, e, claro não se pode ver conotação de outra natureza senão artística nos desejos do poeta".
O biografismo não norteia os estudos literários atuais, ao menos com a força que teve durante longos anos. Mas por ter sido um vezo prolongado, ele deixou vestígios, os quais inegavelmente desaguam no ensino de nível básico e secundário (quando a literatura está presente em escolas dessas esferas). O livro de Godofredo tem aí um fator de alcance : sua linguagem fluente, por vezes coloquial -- "Parte importante da imprensa do Rio de Janeiro descia a pua em Floriano [Peixoto]" --, associa-se a uma estrutura simples e precisa, de poucas citações, que aproxima o leitor do texto.
Sob uma perspectiva de ordem"afetiva e familiar", como registra o autor na introdução, o autor alforria o poeta do estigma de preconceituoso , se por um lado Cruz e Sousa apaixonou-se por mulheres brancas (com as quais fazia sucesso indica uma tia de Godofredo), típicas em Santa Catarina, ele foi casado com Gavita, que era negra, e louvou o jangadeiro Francisco Nascimento em sua ação antiescravista no Ceará.
Mas a biografia não é, por isso, obra de desinteresse para os iniciados. É muito vivo, mesmo entre acadêmicos, o vício de classificar Cruz e Sousa como "o maior poeta negro do Brasil", como se isso fosse um consolo ou um patamar a ser alcançado, por autores morenos, mulatos e amarelos (aliás o "politicamente correto" mandaria que ele fosse chamado de "poeta afrodescendente"). A cor da pele -- assim como o gênero, asexualidade, a condição social -- pode estar na obra de arte , mas a obra de arte não é engendrada por nenhum desses fatores .
Não se pode ignorar o complexo de preconceitos que ainda assola as alteridades (o próprio Cruz e Sousa padeceu, e muito, por ser negro), mas ocorre atualmente que a reivindicação do espaço a ser dado ao excluído faz com que, no plano político, o Brasil tenha um ministério destinado à igualdade racial, quando, do ponto de vista científico, não existem raças entre os humanos, e também faz, no plano literário, com que o "outro" possa se tornar uma celebridade , sem ser necessariamente escritor.
Pedido de ajuda financeira a amigos próximos
Cruz e Sousa, o poeta alforriado", é reforçado pelo registro da indignidade social , concernente ao trabalho intelectual no Brasil. Causa um misto de compadecimento e fúria verificar que um dos maiores nomes da literatura nacional vagou, como um biscateiro, pelas redações dos jornais cariocas, tendo precisado, ao longo de sua curta vida de 36 anos, esmolar recursos emergenciais aos amigos próximos. Isso sim, é uma grande mancha na nossa História, ainda mais esgarçada quando a cultura não recebe qualquer menção nos debates acerca dos projetos nacionais.